Antes de entrar em cena como Ramon, Irandhir Santos, 47, colocava o fone e escutava as vozes da torcida registradas por ele na Arena do Grêmio, em Porto Alegre. As idas ao estádio foram preparação para a personagem na série gravada na capital gaúcha entre outubro e novembro, contando a história da primeira torcida LGBTQIAPN+ do Brasil: a Coligay.
No canto dos torcedores de 2025, o ator buscou o que movia a torcida em 1977, em plena ditadura militar, a enfrentar olhares, xingamentos, e até episódios de violência –o que os levou a aprender caratê para autodefesa– para alentar o tricolor gaúcho.
Torcedor do Sport Recife e frequentador da Ilha do Retiro, ele foi atraído pela história ligando vivências LGBT ao futebol, ambiente “masculino, heteronormativo e machista”. “Ir a campo me traz esse sentimento duplo. Eu vou por uma paixão, o futebol, mas esse tipo de comportamento preconceituoso atravessa. Poderia só voltar triste porque meu time perdeu, mas a gente volta triste porque percebe que as coisas não andaram, né?”
A ideia de “Coligay – a Torcida Impossível”, série e filme para o Canal Brasil, foi baseada no livro “Coligay – Tricolor e de Todas as Cores” (Libretos, 2014), de Léo Gerchmann. “É importante contar a história hoje, relembrar que essas conquistas são muito recentes e, portanto, muito frágeis”, afirmou Patrícia Corso, uma das roteiristas.
Segundo dados do STJD (Superior Tribunal de Justiça Desportiva), desde 2022 foram julgados 34 casos de “discriminação de natureza homofóbica”, com resultados que incluem suspensão, perda de mando de campo e multas. O atacante Vitor Roque, do Palmeiras, fez recentemente um acordo depois de ter publicado a imagem de um tigre caçando um veado após o clássico contra o São Paulo. Disse que foi “uma brincadeira, sem maldade”.
Na última semana, apresentado como técnico do Internacional, Abel Braga disse: “Não quero meu maldito time treinando com camisas cor-de-rosa, parece um time de veados”. Diante da repercussão negativa, fez pedido de desculpa.
O recorde de casos contabilizados pelo Observatório da Discriminação Racial no Futebol –que passou observar casos diversos de preconceito, não apenas raciais– em seus relatórios foi de 39 registros em 2022. No ano passado, segundo relatório ainda inédito, foram 24 casos.
“Não se falava de homofobia no futebol, era um folclore o xingamento homofóbico. A partir da luta contra o racismo, o movimento começa a se organizar, ver que havia também homofobia, e isso passa a ser denunciado”, disse Marcelo Carvalho, diretor do Observatório.
O Coletivo de Torcidas Canarinhos LGBTQ+ faz denúncias do tipo e reúne 23 torcidas de 21 clubes brasileiros, nenhuma delas da dupla Gre-Nal. O Internacional, rival do Grêmio, tentou a sua, mas a iniciativa foi desmobilizada depois de pressão, segundo Onã Rudá, fundador do grupo.
“Cânticos homofóbicos são mais comuns, mas a gente tem xingamentos proferidos por atletas, por membros de comissão técnica, dirigentes, até por árbitros”, declarou ele, também fundador da LGBTricolor do Bahia. “A torcida é o cara da ponta, é o menino que está indo pela primeira vez, que talvez ainda não teve contato com a pauta LGBT. O futebol possibilita que a gente traga ela à baila de forma até mais ampla.”
Em setembro, quando o Grêmio venceu o Vitória em casa, Felipe Rodrigues dos Santos, 33, e Renan Barbosa Salgado, 25, compartilharam no X a foto de um beijo, no entorno da Arena. “Ter vindo ao estádio hoje, pela primeira vez juntos, foi o clássico inferno de ter que ficar duas horas sem demonstrar qualquer afeto”, escreveu Felipe.
“O mundo mudou, acho que ser gay hoje é mais tranquilo, mas dizem que o estádio é um espelho da sociedade, e ele ainda é um terreno muito hostil”, observou. “No caso de cânticos homofóbicos, eu abstraio, não canto, fico pensando o que posso fazer. Sinto como uma guerra perdida.”
“[Abstrair] é uma forma de proteção”, disse Renan, que atua na série da Coligay. “Eu gostaria de viver isso com mais liberdade, porque a gente vive o Grêmio junto, foi uma das coisas que me encantaram no Felipe. Sou muito feliz vivendo o Grêmio no estádio com ele.”
‘Nós somos a Coligay’
A Coligay foi uma ideia de Volmar Santos, gremista e dono da boate Coliseu, para tentar levantar a arquibancada morna que via nos jogos. Para isso, ele convocou os frequentadores do local. O Grêmio atravessava uma seca de títulos. Nos cerca de seis anos em que a torcida durou, ela foi pé-quente –do título estadual de 1977 ao memorável 1983, com a conquista da Libertadores e do Mundial.
Ainda assim, a história da charanga que fazia da arquibancada carnaval foi tratada por anos como lenda por gremistas e deboche pelos colorados. O resgate dela tem cerca de dez anos. Um integrante da Geral, maior torcida gremista, que preferiu não se identificar, disse que muitos a veem como um símbolo do clube, outros como insignificante –que o importante é torcer pelo Grêmio–, e que outros não gostam, porque o mundo das torcidas ainda é homofóbico.
“Como alguns se incomodavam, ninguém tocava no assunto. Com o livro, virou assunto sério. Acho que é uma página linda e eterna. Ela foi importante naquele momento, continua sendo e sempre vai ser”, afirmou Gerchmann, autor da obra que baseia a série.
“Hoje a gente percebe uma disputa porque há uma politização que é acolhida também pelos clubes, o que não era antes”, apontou Luiza Aguiar dos Anjos, autora de “Plumas, Arquibancadas e Paetês – uma História da Coligay” (Dolores Editora, 2022). “A Coligay tem um sentido de representatividade positiva, traz um contraponto de que as coisas não são tão preto no branco, que há resistências e que algo assim já foi possível.”
Aos 77 anos, Volmar vive em Passo Fundo, sua terra natal, a cerca de 280 quilômetros de Porto Alegre. Segundo ele, a história da torcida “é muito importante” e há pessoas querendo outra Coligay. O protagonista da série é baseado nele, apesar de não levar seu nome. Segundo Corso, o roteiro tem alterações dramáticas. A previsão de lançamento é para o segundo semestre de 2026.
Uma das cenas foi gravada em frente aos arcos do estádio Olímpico, vazio desde que o clube migrou para a Arena, em 2012. Numa visita à velha casa tricolor, hoje deteriorada, Irandhir caminhou pelas arquibancadas onde a Coligay viveu grande parte de sua história. No alto, perto de um setor ocupado por ela no passado, uma pichação ainda diz “Coligay vive”.
“Quando essa história for vista, o que ela poderá trazer de discussão é quanto a gente regrediu ou avançou. Esse é meu principal motivo para estar aqui”, disse o ator.

