Podcast reconta escândalo da vassoura que abalou o curling – 10/02/2025 – Ilustrada
Num dos episódios de “Broomgate”, o narrador relembra a primeira página do modesto livro de regras do curling. “O curling é um jogo de habilidade e tradição. Um lançamento bem executado é um prazer de se ver. Um verdadeiro jogador nunca tenta distrair seus oponentes nem impedí-los de jogar com seu melhor, e preferiria perder a vencer de modo injusto.”
A julgar pelo podcast, esse clima de camaradagem e companheirismo se manteve desde o lançamento das primeiras pedras de granito nos lagos da Escócia, no século 16, até hoje. Nem as regras mudaram muito.
Até que, em 2015, o surgimento de uma nova vassoura super-abrasiva quase destruiu essa aura fraterna do esporte. Grandes astros ficaram atônitos ao ser derrotados por rivais com o novo equipamento, com estratégias de jogo e movimentos nunca vistos antes.
As vassouras não só criavam condições de jogo desiguais —estavam mudando a forma de se praticar o esporte.
John Cullen, comediante e curler semiprofissional, resgatou essa história numa breve série de seis episódios. Ele, aliás, teve certa parte na querela toda, já que foi quem apresentou aos inventores da nova vassoura o time de um atleta estrelado que começaria promovê-la no circuito profissional.
Bem estruturado, o documentário leva os microfones até os principais personagens da controvérsia toda: dos inventores da nova vassoura, atletas consagrados e derrotados com ela, e gente que tinha o poder de decidir o que fazer com elas.
Para os não iniciados, o curling é uma espécie de bocha com vassouras em pista de gelo com elementos de sinuca. O jogo consiste em lançar blocos de granito de quase 20 quilos numa pista de gelo na direção de um alvo. A cada rodada, duas equipes se alternam no lançamento de oito pedras cada —além de mirar o alvo, os jogadores podem optar por atingir as pedras já posicionadas.
Já os varredores dão o ajuste fino ao lançamento: ao friccionarem o gelo à frente da pedra em movimento, podem alterar ligeiramente sua trajetória ou fazê-la ir mais longe. Pontua o time que tiver a pedra mais próxima do centro do alvo ao final de cada rodada.
O xadrez do gelo seguia sua trajetória sem perturbações. Até que dois empresários de uma marca de equipamentos esportivos resolveram tentar a sorte no Dragon’s Den, o “Shark Tank” canadense, um programa de TV onde empreendedores apresentam ideias para investidores.
Donos da Hardline, os irmãos Manavian tinham em mãos algo revolucionário: com um tecido criado por um inventor secreto, sua vassoura Icepad era capaz de reduzir o atrito entre a pedra e o gelo como nenhuma outra. Foi suficiente para receberem um bom aporte —o que inclusive permitiria a um dos irmãos deixar o trabalho como carteiro para se dedicar só à empresa.
A Icepad se mostraria tão imbatível como ameaçadora. Com ela, o controle sobre a trajetória das pedras pelos varredores tornou-se tão grande que chegaram a compará-la a um joystick. Além de ser mais fácil direcioná-las, a vassoura também permitia que os blocos de granito alcançassem distâncias maiores, já que reduzia muito o atrito com a pista.
Ocorre que, até aquele momento, não havia nada nas regras do jogo que estabelecesse regras específicas para o material das vassouras, nem que as equipes deveriam usar equipamentos iguais. Pior então para quem não tivesse a nova vassoura. Não demoraria até que outra marca surgisse com uma vassoura ainda mais abrasiva, a Black Magic, que permitia controle maior sobre as pedras que a pioneira Icepad.
A resolução do dilema será encontrada no evento que ficou conhecido como a “Conferência da Varrição”, quando esportistas, cientistas e burocratas do curling se reuniram para enfim definir se a nova tecnologia deveria ou não ser acolhida.
A inusitada história é contada com envolvimento por Cullen. Mesmo nos momentos de inflexões mais dramáticas, ele não soa excessivo, mas dá à série um estilo próprio que contribui para construir um clima de mistério tão tenso quanto divertido.
Há gravidade na situação, afinal, é um esporte olímpico sofrendo uma descaracterização essencial. Ao mesmo tempo, é um conflito que se desenrola numa modalidade que parece ainda capaz de resguardar uma dimensão comunitária entre aqueles que se envolvem nela.
“Broomgate” se sustenta por também contar essa história acessando seus principais personagens, dos criadores da vassoura transgressora às grandes estrelas do esporte que protagonizaram seu uso ou a contestação dele.
Há um bocado de termos específicos do curling, mas a série faz um esforço razoável em situar o público pouco familiar com o esporte —mesmo sendo um podcast canadense.
Para os brasileiros, há um estranhamento inevitável com uma modalidade que no mais das vezes lembramos como expressão daquilo que nos é diferente —ainda que seja isso mesmo que torne ainda mais fascinante o mergulho nas histórias deste esporte.